Uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal pode ter passado despercebida pela maioria dos brasileiros, mas suas consequências já começam a aparecer nos balanços das empresas. A Netflix foi apenas a primeira vítima visível de uma mudança jurisprudencial que promete encarecer desde a transmissão do Oscar até a manutenção de aviões no exterior.
O Caso que Mudou Tudo
Em agosto de 2024, o STF julgou por 6 votos a 5 um caso envolvendo a Scania que tramitava há incríveis 23 anos. A decisão ampliou drasticamente o alcance da CIDE-Royalties, uma contribuição de 10% sobre remessas ao exterior criada em 2001 supostamente para proteger a tecnologia nacional.
O voto de Minerva do então presidente Luís Roberto Barroso definiu que a contribuição pode incidir sobre praticamente qualquer tipo de contrato internacional, não apenas sobre transferência de tecnologia. A justificativa? O Brasil precisa investir em tecnologia e não seria simpático reduzir a arrecadação em cerca de R$ 4 bilhões anuais.
O Impacto Imediato: O Caso Netflix
A gigante do streaming descobriu da pior forma possível o que significa fazer negócios no Brasil. Após ter ganho uma causa em 2022 que a dispensava do pagamento da CIDE, a nova jurisprudência do STF a obrigou a provisionar US$ 619 milhões em seu balanço trimestral.
O resultado? Apesar de faturamento recorde de US$ 11,51 bilhões, o lucro por ação desabou para US$ 5,87, bem abaixo dos US$ 6,97 esperados pelo mercado. As ações mergulharam 10%, apagando boa parte da valorização anual.
O CFO Spence Neumann tentou explicar o inexplicável aos investidores internacionais: "Nenhum outro imposto se parece ou se comporta dessa forma em qualquer outro país em que operamos. É o custo de fazer negócios no Brasil."
A Transformação de uma Contribuição em Imposto
O advogado Daniel Szelbracikowski, que defende a Scania, resume bem o problema: "Quando o Supremo diz que a contribuição pode ser cobrada de qualquer um sobre qualquer coisa, ele transforma a contribuição em imposto."
A diferença é técnica, mas fundamental. Uma contribuição, segundo a Constituição, precisa ter alguma relação com seu fato gerador e destinação específica dos recursos. Um imposto não precisa dessa vinculação. Ao eliminar a necessidade de "referibilidade", o STF criou na prática um novo imposto disfarçado de contribuição.
Isso tem implicações profundas no sistema tributário nacional e no pacto federativo, já que impostos devem ser repartidos entre os entes federativos. E há outro detalhe inconveniente: os recursos da CIDE-Tecnologia não vêm sendo aplicados na área de sua destinação.
Quem Paga a Conta?
A decisão afeta muito além das Big Techs. Veja alguns exemplos práticos de quem vai pagar os 10% adicionais:
Mídia e Entretenimento: Se a Globo quiser transmitir o Oscar ou contratar conteúdo internacional, pagará a taxa.
Startups: Uma empresa de biotecnologia que use serviços de nuvem da Amazon ou Google terá custo 10% maior.
Empresas em crescimento: Uma companhia brasileira que contrate consultores ou advogados estrangeiros para seu IPO nos EUA pagará a contribuição.
Aviação: A GOL enviando um avião para manutenção nos Estados Unidos? Mais 10%.
Produção de conteúdo: Produtoras brasileiras que contratem talentos ou serviços do exterior terão custos majorados.
O Paradoxo da "Proteção à Tecnologia Nacional"
A ironia é cruel. Um tributo criado para supostamente proteger e desenvolver a tecnologia nacional está na prática encarecendo justamente a absorção de tecnologia de ponta pelas empresas brasileiras.
Como desenvolver inteligência artificial sem contratar serviços de nuvem internacionais? Como competir globalmente sem acesso aos melhores fornecedores e parceiros? Como inovar isolado do resto do mundo?
Gilmar Mendes, dias antes do julgamento, declarou que "independência tecnológica rima com soberania" e que "é preciso desenvolver tecnologia para não sermos dependentes de modelos dominantes." A questão que fica: como exatamente cobrar mais impostos sobre tecnologia importada vai ajudar o Brasil a desenvolver tecnologia própria?
O Sinal que Mandamos ao Mundo
A Netflix teve seu balanço impactado, mas o dano maior é a mensagem enviada ao mercado global: o Brasil é imprevisível. Uma empresa pode ganhar uma causa judicial, planejar suas operações com base nessa segurança jurídica e, anos depois, ver uma nova decisão mudar completamente as regras do jogo retroativamente.
Para investidores estrangeiros que avaliam onde alocar capital, isso é um sinal vermelho gigante. O "custo Brasil" não é apenas a carga tributária alta, mas principalmente a impossibilidade de planejamento de longo prazo.
E Agora?
A Scania já anunciou que vai recorrer com embargos de declaração. Outras empresas certamente seguirão o mesmo caminho. Mas o estrago está feito. A insegurança jurídica foi escancarada para o mundo ver, com direito a impacto em balanço de empresa listada na Nasdaq e ações despencando no after market.
Enquanto isso, há ainda um projeto de lei tramitando para tributar plataformas de streaming em 3% a 6% do faturamento, além de exigir mais conteúdo nacional. Como se o ambiente de negócios já não fosse suficientemente hostil.
A decisão do STF quis, nas palavras de uma fonte próxima ao caso, "dar uma f%@! nas Big Techs, mas acabou prejudicando o produtor de conteúdo brasileiro, o empreendedor que precisa contratar serviços de fora para inovar, e todo mundo que opera numa economia globalizada."
No final das contas, quem paga a conta somos todos nós: consumidores que terão serviços mais caros, empresas que terão custos mais altos e um país que se torna cada vez menos atraente para investimentos e inovação.